Me.
Manoel Gomes Rabelo Filho
A relação entre a ciência e a religião tem sido, durante sua
história, ora contraditórias, enquanto são realizadas oposições
tanto de objetivos quanto de racionalidades, ora significativas,
enquanto as mútuas racionalidades, entre fé e razão, passam a
aprofundar ideias, descobrir sentidos mútuos e reformular suas
posições extremadas.
Elementos
teóricos da relação ciência e religião
Uma das reflexões bem inspiradoras sobre o
fenômeno religioso realizada por Georg
Simmel (1858-1918) foi a de
considerar que “um de seus eixos é uma dimensão humana geradora
de sentidos – que denomina 'religiosidade' – que o filósofo
distingue de suas manifestações sócio-históricas – as
religiões” (RIBEIRO, 2006, P. 110-111). Isto possibilita novas
luzes aos estudos sobre o tema.
Mesmo os filósofos das ciências ainda não
chegaram a um acordo sobre o que é ciência e o que não é. A
história da ciência, que não se configura como ciência e nem como
história é considerado um estudo para além da história e da
ciência. Acredita-se que esta história da ciência possui um método
diferente das duas disciplinas que as aglutinam (história e
ciência). Ela discorre sobre os conceitos acerca da ciência e os
fatores científicos sobre um problema. “Por exemplo: a teoria da
evolução de Lamarck
estava bem formulada e fundamentada para a sua época?” (MARTINS,
2014, p. 306). Esta marca significativa que a ciência recebe e, os
estudos que dela tentam dar conta para ampliação e aprofundamento
de seus conceitos, ideias e teorias, fornecem dados importantes e às
vezes apresentam algumas lacunas de fundamentação metodológica.
Lamarck por exemplo faltou indicar formas intermediárias de conchas
fósseis e atuais, o que com os dados da época poderia ter sido
feito. A ciência, neste sentido, procura formular suas teorias
dentro de seus contextos históricos e que neles estão disponíveis
informações para sua realização. A informação indisponível ou
que carece de dados objetivos e comprovações empíricas não poderá
ser utilizada como pressupostos de ideias científicas.
Os dados científicos não são isolados de outras formas de
conhecimento. É importante avançar para além das fronteiras da
ciência.
Os homens de ciência, ao se
constituírem teorias e modelos explicativos para os fenômenos da
natureza, dialogam com outros homens que exercem atividades
aparentemente distantes da científica, como teólogos, artistas
plásticos, músicos ou poetas. Seria preciso navegar também nessas
áreas para encontrar caminhos em que pudéssemos transitar mais
amplamente (BRAGA, GUERRA, REIS, 2007, p. 10).
A relação entre ciência e religião foi uma relação conflituosa
desde o século XIX. O iluminismo, com seus pressupostos saudosistas
de destacar a ciência acima de todas as possibilidades de
compreensão da vida e do ser humano, fornece a maioria das
justificativas para dar à ciência maior estatuto que às outras
formas de conhecimento.
Tradicionalmente era a filosofia que assumia
este papel de grande mentora da humanidade. Na Idade Média passou a
ser a Teologia. Com os pressupostos das ciências estabelecidos a
partir do século XVI, a ciência e a razão chegam a ser
“endeusadas” como únicas a
darem respostas para todos os problemas humanos.
O positivismo,
filosofia que pretende estabelecer que a ciência é a forma de
conhecimento mais elevada, indicava uma espécie de degrau em que os
mitos e a religião estão entre as formas de conhecer imaturas. A
filosofia seria aquela que levaria ao conhecimento das possibilidades
da ciência e portanto estaria no segundo degrau. No mais alto grau
estaria a ciência, que dispensaria todas as outras formas de
conhecimento, pois somente ela possibilita a “verificação”,
como fonte da verdade última e definitiva.
Esse esquema mostra como o positivismo pensa as formas de
conhecimento de maneira progressiva. O posterior supera o anterior e
o elimina, restando no final somente a Ciência:
Mitos → Religião →
Filosofia → Ciência
|
O marxismo
proporcionou cerceamento das igrejas nos países de socialismo real.
Militantes comunistas e cristãos passaram a fazer resistência ao
nazismo e ao fascismo, e isto modificou a situação de oposição.
Marx mesmo pensara sobre a religião como expressão do mundo real e
protesto contra este mundo: “O homem
é um ser abstrato, fora do mundo. O homem é o mundo
dos homens, o Estado, a sociedade.
Este Estado, esta sociedade produzem a religião, uma consciência
invertida do mundo, porque são um
mundo invertido” […]. “A miséria religiosa
é, de um lado, a expressão da miséria real e, de outro o protesto
contra a miséria real. A religião é o suspiro da criatura
oprimida, o coração de um mundo sem coração, assim como é o
espírito de uma situação carente de espírito. É ópio do povo”.
(KARL MARX).
“A situação em
que o homem vive é 'uma situação que necessita de ilusões', daí
a busca da religião. E é por isso que 'a crítica do céu se
transforma em crítica da terra'” (LESBAUPIN).
Marx entende que a religião desaparecerá não pela luta
anti-religiosa, mas que perderá sua razão de ser no momento em que
a sociedade for como “obra de homens livres associados, agindo
conscientemente e mestre de seu próprio movimento social” (MARX).
Émile Durkheim,
ao indicar um tempo de renascimento do misticismo, expressa sua fé
no futuro da razão. Ele previa um futuro em que o racionalismo
científico se transformaria em regra de ação para o futuro.
Indica a religião como um fato social constituída de gesto social
(rito), na qual a fé se cria e se recria constantemente. Para
Durkheim “a função da religião, e do culto é criar coesão”,
no sentido de que possam conhecer o laço social e que possam
entender o surgimento do novo e das rupturas (SANCHIS).
Outro aspecto importante que Durkheim referenda é a questão do
sagrado. Para o seu entender o sagrado possui uma origem social:
“Quando a religião parece caber inteira no foro íntimo do
indivíduo, ainda assim, é na sociedade que encontra a fonte viva da
qual ela se alimenta”. (DURKHEIM apud SANCHIS, p. 55). É bom
lembrar que para o autor não é mais o campo inteiro da ação
social que está destinado a ser dominado pela razão científica.
Por certo, tratando-se de modelar uma imagem do mundo conforme à sua
realidade, é a ciência, instrumento especificamente humano, que é
chamada incontestavelmente, a substituir quase inteiramente a
religião.” (SANCHIS, p. 58). Essa informação, acrescida à ideia
de que a ciência é representação de outra origem e a religião,
“sua verdadeira função não é nos fazer pensar, de acrescentar
às representações que devemos à ciência representações de
outra origem e de outro caráter, mas de fazer-nos agir e ajudar-nos
a viver” (DURKHEIM, Formas elementares...). Há duas dimensões que
a religião possui prioridade e que não há na ciência: a das
regras nas relações sociais, configuradas pela dimensão ética e
“a da motivação pela vida societária coletiva, que o mundo
ritual, conjunto simbólico-expressivo energizado pelas potências
emocionais, proporciona aos homens reunidos”. (SANCHIS, p. 59).
Permanece então uma pergunta: Quando e em que medida a ação
coletiva nos ritos podem dispensar a racionalidade? Então como
Durkheim define a religião e que relação ela pode ter com a
ciência? É uma projeção ideal, necessária, pois sempre que
possível eles estarão atendendo a grandes ideais.
Observa-se que no pensamento de Durkheim há um diferencial em
relação aos outros teóricos, pois como a religião é necessária
para a sociedade, ela não necessariamente deixaria de existir, mas
se modificaria, transformaria e apareceriam outras manifestações
religiosas derivadas ou não de religiões anteriores.
Max Weber
considera que a sociedade moderna ocidental “é fruto de uma
conjunção única de fatores que historicamente se combinaram no
contexto da civilização ocidental judaico-cristã” (MARIS, 2011,
p. 70). O processo de racionalização do mundo ocidental toma
algumas peculiaridades da religião. Weber não concebe o fenômeno
histórico como único, em termos de se guiar para um “progresso”,
possuindo causas que possam justificar configurações históricas.
Neste sentido é que ele se afasta do modelo do materialismo
histórico e das concepções evolucionistas, características de sua
época. Ele rejeita aproximação das ciências sociais com a
biologia, de cunho evolucionista, e vê mais importância no método
histórico e comparativo.
A visão antievolucionista e anti-iluminista de Weber o fazem
reconhecer “uma consciência da limitada competência da ciência e
do pensamento racional modernos [...]”. A racionalização moderna
ocidental proporcionou “um processo de crescente intelectualização
com elaboração de princípios, regras, critérios que pretendem ter
validade universal e coerência interna, num projeto próximo ao do
matemático” (MARIS, 2011, p. 73). Isto é específico da sociedade
ocidental, onde se deixa de lado o carisma e passa-se a valorizar o
racionalmente construído, elaborado e explicitado. Para entender
esse tipo de racionalidade Weber “discute a afinidade do
protestantismo com o capitalismo” […] e “compara diferentes
civilizações e identifica a raiz dessa racionalidade específica
nas peculiaridades da religiosidade que constitui a matriz cultural
do ocidente”. (MARIS, 2011, p. 73).
O interesse de Max Weber pela religião se dá
“na medida em que ela é capaz de formar atitudes de disposições
para aceitar ou rejeitar determinados estilos de vida ou para criar
novos” (MARIS, 2011, p. 74) e não a especificidade do fenômeno
religioso. Através dela se pode “conhecer os motivos e intenções,
de um conjunto de ações sociais.” (MARIS, 2011, p. 75). “O
protestantismo teria criado um estilo de vida, um ethos
que teria uma afinidade eletiva
com o modo de produção capitalista, segundo Weber” (ibid.). Para
Weber o protestantismo motivou mão de obra para a produção de
riquezas e para uma poupança, antes que o capitalismo tivesse sua
autonomia. Diferente do catolicismo que investia nas “almas”
virtuosas que faziam ascese monástica e o uso de riquezas para ornar
de ouro as igrejas. O protestantismo exigia ascese de todos os fiéis
e diminuiu o número de sacramentos e incentivou a leitura e
interpretação da bíblia: “Era assim uma religião menos
ritualista, mais intelectualizada, mais ética, menos encantada,
menos 'mágica'” (MARIS, 2011, p. 76).
Em sua noção de “tipos ideias”, que fizeram entender a
racionalização, Weber destaca o mago, o sacerdote e o profeta. “O
mago tem o seu poder legitimado pela tradição, o sacerdote pela
instituição e por doutrinas/teologias racionalmente construídas, e
o profeta por suas qualidades extraordinárias – o seu carisma
pessoal” (MARIS, 2011, p. 79). Essa coerência lógica não indica
que Weber via essas noções na realidade mesma. Os tipos ideias
servem apenas como referência, e não como algo da realidade. O mago
seria o que faz com que os seres sobrenaturais – espíritos,
deuses, entidades – sejam obrigados a realizar sua vontade. O
sacerdote é o oposto, pois a atitude é de reverência e submissão
ao sobrenatural. O fracasso do pedido feito pelo sacerdote é visto
como o sinal do poder sobrenatural e o fracasso do mago indica que
seu carisma o abandonou e é abandonado pelos fiéis. O mago trabalha
de forma autônoma e o sacerdote obedece a uma instituição. Há uma
tentativa dos sacerdotes desqualificarem o poder dos magos, neste
sentido é que “a oposição entre magia e religião seria fruto
da luta dos especialistas do sagrado ligados a uma instituição
contra os especialistas autônomos” (MARIS, 2011, p. 81). Ocorre
uma espécie de racionalização da passagem da magia para a
religião. A diferença entre elas é que são racionalidades
distintas e não no sentido que a magia seria uma irracionalidade.
Existe racionalidade na magia, mas de outro tipo, diferente da
racionalização ocidental que tem o caráter calculador. O profeta
seria aquele que realiza “rupturas fundamentais em uma religião”.
“Os profetas pregavam uma religião de salvação em oposição a
religiões ritualistas e práticas mágicas” (MARIS, 2011, p. 82).
O caso específico do profeta
é que defende uma ética religiosa em substituição a tabus. Essas
éticas tem características universalistas e fraternais,
implementando uma racionalização religiosa com a moral e a ética
que superam a noção de pureza/impureza advindas dos tabus. Os
profetas emissários – próprios das religiões do oriente médio
(zoroastrismo, judaísmo, cristianismo, islamismo) - “pretendiam
ser um instrumento de transformação da religião, e da vida, e
assim propunham leis, as praticavam e cobravam sua observância por
parte de todos. Já o profeta exemplar defende uma religião de
salvação de tipo contemplativo. Ele é visto como um santo, um
exemplo. Buda seria um profeta exemplar” (MARIZ, 2011, p. 83). O
profeta emissário conduz à ascese e o exemplar à mística. Na
religião ascética o fiel é um instrumento de Deus e sua postura é
aprender a se controlar dos impulsos naturais e procura transformar o
mundo para servir a Deus. A religiosidade mística desenvolve a
contemplação em que o fiel se vê como receptor do divino. Tanto a
ascese quanto a contemplação podem ser para dentro ou para fora do
mundo. (Ibid., 2011, p. 83).
O que Max Weber fez foi “destacar aspectos da lógica interna das
distintas concepções religiosas para assim compreender motivações
e sentidos que possam dela surgir” (MARIZ, 2011, p. 84). Deve-se
destacar que para ele o protestantismo puritano desenvolver uma
ascese para salvar almas e não desenvolver o capitalismo, pois este
último é “uma consequência não intencional” (Ibid., 2011, p.
85).
Outro autor com significativa contribuição à
esta relação entre a ciência e a religião foi Marcel
Mauss. Este autor possui uma obra
bem representativa em relação à sociologia da religião. A
transição entre os séculos XIX e XX foi marcada pela laicidade e
autonomia das repúblicas em questões confessionais na França.
Surge o direito do cidadão à prática religiosa e esta liberdade
transforma a universidade. Na Sorbone a teologia foi retirada em 1885
e foi criada uma cessão de Ciências religiosas para produzir o
conhecimento científico sobre o tema. “Por 'científico'
entendia-se um conhecimento independente das autoridades teológicas
e ideológicas, baseado no modelo de liberdade e autonomia das
ciências da natureza: uma busca imparcial e livre da verdade. sem
apologias” (MENEZES, 2011, p. 102-103). As interpretações eram
divergentes, pois o fenômeno religioso era tratado de forma parcial.
Os conservadores viam no sagrado algo incontestável da natureza
humana, os liberais viam a religião como uma primitividade, erro da
mente humana. Os durkheimianos desenvolveram uma via intermediária.
Viam na religião algo importante para o vínculo social e a tratavam
como um fenômeno social real. É neste sentido que Marcel Mauss
“assumiu a missão de aplica o método sociológico aos fenômenos
religiosos” (MENEZES, 2011, p. 104).
Marcel Mauss afirmava que não existia povo não
civilizado, mas civilizações diferentes. Procurou resguardar a
sociologia da religião das pré-noções da tradição
judaico-cristã, realizou análises das religiões, discutiu as
interpretações, questionando as reconstruções hipotéticas sem a
realização de fatos cientificamente verificáveis. Baseou-se na
Antropologia social inglesa para avaliar os dados etnográficos.
Escreveu sobre o sacrifício, a magia e a prece, temas consagrados
pelas teorias das religiões. Junto com Hubert, Mauss entende o
sacrifício como consagração, caracterizado pela passagem do mundo
comum ao religioso. Um sacrifício que proviria do sagrado, que
comunica o profano e o sagrado por meio de uma vítima e se demonstra
ambíguo exercendo forças tanto para o bem quanto para o mal
(MENEZES, 2011, passim
p. 105-109).
No Ensaio sobre
a magia Mauss faz críticas à noção
de que a magia seria de tempos ancestrais e explicadas pela lei da
simpatia. Além de ter um caráter transgressor, a magia tem uma face
social. Seus rituais mágicos, fórmulas demonstram a presença da
sociedade na magia. “E aquilo que viabiliza a magia, sua base de
sustentação, seria a crença socialmente partilhada nos poderes
eficazes manipulados pelo mágico” (MENEZES, 2011, p. 110). Mauss e
Hubert não acreditam que a religião teria saído da magia, desta
forma descartam que magia e religião teriam uma sequência no
pensamento humano, mas uma paralelidade. Mais do que forma deturpada
de religião, a magia representa um enquadramento acusatório da
religião do outro, a ideia de uma falsa religião (MENEZES, 2011, p.
111).
Em A prece
Mauss realiza, a partir de dados etnográficos sobre as cerimônias
australianas de intichiuma, uma descrição dos procedimentos
metodológicos de seu trabalho. A prece possui relação direta com
outros fenômenos sociais – fórmulas jurídicas e morais, os
juramentos –, fórmulas que produzem efeito aos serem proferidas. O
estudo da prece se justifica pelo fato de ser “um
ritual oral de recitação de palavras,
onde gesto e palavra, ou ação e representação aparecem
articuladas, a prece seria uma crença posta em prática, ao ser
enunciada,
cuja análise permitiria elucidar as relações entre mito e rito”
(MENEZES, 2011, 112). A bênção cristã – In
nomine patris – combina dogma,
liturgia e envolve uma série de elementos aglutinados ao longo de
muito tempo, aos quais são imperceptíveis pela consciência
individual. Portanto, “uma prece não é apenas a efusão de uma
alma, o grito de um sentimento. É o fragmento de uma religião
[…], ação tradicional eficaz que versa sobre coisas sagradas”
(MAUSS apud MENEZES, 2011, p. 113). Ao observar os contextos, pode-se
considerar a prece um produto coletivo, obra de grupos sociais usados
em diversos momentos da história, ainda que sejam as mesmas, mas com
sentidos diversos. “Por isso, para recuperar os sentidos
específicos em cada momento, é fundamental relacionar as preces à
vida das coletividades que as empregavam” (MENEZES, 2011, p. 113).
A prece também depende da cerimônia, ao qual muitas vezes o mesmo
ritual pode assumir sentidos diversos, com diferentes intenções.
“Para Mauss uma prece deveria ser entendida duplamente em
referência a seus contextos social e ritual” (MENEZES, 2011, p.
113).
A intenção de Marcel Mauss era realizar análises com diferentes
métodos para redefinir o tema científico estudado. Pretendia
elaborar explicações rigorosas dos fenômenos religiosos a partir
da “sua concepção de religião como articulação de crenças e
práticas”, o que “permitiu o deslocamento da análise das formas
institucionalizadas ou oficiais da religião para as formas concretas
em que ela é vivida, dando espaço para a incorporação do ponto de
vista dos agentes e as contradições existentes” (MENEZES, 2011,
p. 115). Mauss, então, modifica os conceitos empregados de religiões
da África, Ásia, Oceania, Américas, a partir da experiência
cristã, vistas como inferiores e primitivas. Ele “mostrou a
necessidade de cuidado constante do pesquisador quanto a seu
instrumental”, […] por outro lado, Mauss alarga as fronteiras da
sociologia da religião na qual “ela deveria se dedicar às
crenças e às práticas religiosas de toda a humanidade” e não
apenas “as religiões 'do livro'” (MENEZES, 2011, p. 116).
E. E. Evans-Pritchard,
antropólogo inglês do século XX, foi pesquisador de campo e
teórico que superou o funcional-estruturalismo, passando da função
ao significado na perspectiva hermenêutica, estrutural e histórica.
Realizou expedições antropológicas entre os azande e nuer do
Quênia e do Sudão (África). Deu à etnografia um estilo firme e
seguro, límpido, comedido equânime, pausado, superior e
conversacional, sendo assim um escritor homogêneo da antropologia.
Seu trabalho se caracteriza por ser produzido sem a interferência do
meio ou da subjetividade do autor. Estudou o funcionamento da
bruxaria, a organização sedimentária e a imagem modal da divindade
entre os nuer ou os azande. (STEIL, 2011, p. 125-129).
A contribuição de Evans Pritchard em relação ao método da
observação participante dá distinção à antropologia
profissional e procura desenvolver uma abstração estrutural na
análise etnográfica. A sua perspectiva era primeiro “apreender as
características significativas de uma cultura ou tradição e
traduzi-la para a própria cultura”, o segundo momento “intenta,
através da análise, decodificar as formas ou estruturas subjacentes
de uma sociedade ou cultura,” e o terceiro nível “compara,
implícita ou explicitamente, as estruturas sociais de diferentes
sociedades”. (STEIL, 2011, p. 129-130).
Um dado importante em Evans-Pritchard do
trabalho feito entre os Azande
é ter reconhecido que nem sempre a religião está vinculada a uma
instituição. Já o trabalho feito junto aos Nuer
mostra que suas crenças estão
pautadas no mundo material. O que pode ser fundante numa religião
pode não existir noutra. O significado estrutural de distintas
sociedades podem funcionar muito bem, ainda que com bases distintas.
Evans-Pritchard teve a preocupação de “buscar a lógica e a
racionalidade que práticas, sentimentos, ideias e valores –
irracionais, anárquicos e pagãos – possam ter no sistema social
ou religioso do nativo” (STEIL, 2011, p. 132). Esta compreensão da
racionalidade que os sistemas sociais dos nativos leva a uma
compreensão razoável e inteligível para apreender diversos
costumes e além do mais “ele acaba estabelecendo as bases para o
argumento a favor da validade de qualquer concepção do mundo que se
situa nos marcos de uma cultura ou tradição […]. Desde o momento
em que encontrou um sentido para as práticas de bruxaria e oráculos
africanos, parece que todas as demais práticas religiosas se tornam
razoáveis” (STEIL, 2011, 133).
Em sua obra Bruxaria,
oráculos e magia entre os azande,
Evans Pritchard “analisa as crenças e práticas de bruxaria,
feitiçaria, oráculos e magia entre os azande, situando-as dentro de
uma sistema relacional e integrado, que as torna compreensíveis e
racionais”. As crenças são místicas pois dependem da existência
de certos fenômenos naturais. A bruxaria para os azande é uma
herança e se apresenta fisicamente no corpo do bruxo. Além disso
alguém pode ser bruxo sem ter consciência disso e ainda ser causada
por infortúnios familiários e práticas maléficas (STEIL, 2011, p.
135).
O que não tem explicações por causas físicas e naturais é
admitido como bruxaria para os azande. Os bruxos são vulneráveis a
práticas e rituais, portanto, no campo mística sua ação pode ser
neutralizada ou mudar o curso da ação. Os feiticeiros têm
conhecimentos sobre remédios e podem identificar o bruxo, mas não
são confiáveis. Em geral os azande preferem consultar os oráculos,
que são realizados através de veneno especial dado a uma galinha,
na qual a pergunta feita é respondida com a morte ou a vida da ave
(STEIL, 2011, p. 136-137).
Para Evans-Pritchard a magia é usada pelos azande para obter saúde
ou realizar vingança e que possui características místicas para
combater as doenças. Na magia deve-se encontrar o bruxo para causar
a sua morte por meios místicos.
Em suma, na vida dos azande,
bruxaria, feitiçaria, oráculo e magia estão interligados num único
processo. E, como escreve Evans-Pritchard: “A morte evoca a noção
de bruxaria; os oráculos são consultados para determinar o curso da
vingança; a magia é feita para neutralizar a causa; os oráculos
decidem quando o mágico deve executar a ação contra a vingança;
e, uma vez que o procedimento mágico terminou, o remédio é
destruído” (STEIL, 2011, 138-139).
Já no seu trabalho A
religião dos Nuer Evans-Pritchard
discute sobre a “concepção religiosa e social expressa por este
grupo africano tanto na forma ritual quanto por meio de seu credo e
de sua cosmologia” (STEIL, 2011, p. 140). Os nuer não estão
preocupados com o pós-morte e nem com os espíritos dos mortos ou
fantasmas. Os espíritos para este povo podiam ser os de cima,
associados ao ar, aos rios e à luz, e os espíritos de baixo,
associados às plantas e animais. Os nuer consideram os totens –
animais e plantas – como um símbolo e não elas em si mesmas. Há
uma relação entre os totens e a estrutura social. O espírito
reflete a ordem social e os espíritos totêmicos são mais
imanentes, materiais. “Evans-Pritchart sugere, a partir de sua
observação dos nuer, que em todas as sociedades humanas o
pensamento religioso reflete a ordem social.” Os espíritos
totêmicos se relacionam a uma linhagem, um grupo social, e este
grupo exclusivo expressa a sua relação totêmica com Deus através
do respeito às criaturas, e estes são símbolos da relação
(STEIL, 2011, 141-142).
O criador, representado pelo espírito de cima, é protetor de todos,
das linhagens e das famílias; representado pelos espíritos de
baixo, da natureza e do fetiche, é o protetor dos indivíduos. Não
é possível conhecer o espírito em si, pois ele só se manifesta na
natureza. Quanto à lógica presente nas analogias simbólicas
elaboradas pelos nuer, Evans-Pritchart entende que elas se
estabelecem “num nível imaginário do pensamento onde a mente
opera como figuras, símbolos, analogias e metáforas poéticas. Sua
interpretação dessas crenças se faz, portanto, em termos de
associações simbólicas dentro de um sistema cosmológico
estruturado específico que dá sentido e torna reconhecível tais
relações para aqueles que partilham do mesmo sistema.” (STEIL,
2011, p. 144).
Esses cientistas trazem uma perspectiva importante para o
conhecimento da relação entre ciência e religião. Primeiro é a
compreensão de que a ciência, dentro de suas possibilidades, buscar
meios para entender a religião como um fenômeno, partindo do
pressuposto de tradições culturais diversas, respeitando a fé dos
crentes, para daí passa a entender mais profundamente o seu
significado.
Perspectivas
das aproximações entre Teologia, Religião e Ciência
À Teologia
coube desenvolver o discurso racional de defesa de cada tradição
religiosa. Ela será então redefinida como hermenêutica da tradição
de fé, e como a que vai aprofundar a crítica da finalidade das
ciências e ao mesmo tempo cuidar de seu próprio método. A Teologia
investigará o sagrado das tradições religiosas com objetividade,
na interpretação dos mitos, ritos e símbolos de cada tradição de
fé. Ela colabora com a interpretação dos símbolos no campo
interdisciplinar da história comparada das religiões e na crítica
psicossocial ao fenômeno religioso. Será então uma teologia em
diálogos com as ciências sociais, humanas e as da natureza usando o
método da fenomenologia da religião. Este método científico
consiste na observação, explicação dos mitos, dos símbolos e dos
rituais. Neste sentido procurará interpretar a religião do ponto de
vista do crente e o valor dessas crenças para as suas vidas (ARAGÃO,
2010).
Foi no estudo comparado das religiões que a
fenomenologia da religião foi usada como método de estudo das
religiões. Pode-se atribuir a R. Otto (1869-1937) em sua obra O
Sagrado, o desenvolvimento deste
método. Ele confrontou os grandes temas religiosos tendo a base na
compreensão e na participação no mundo das religiões. Mantêm-se
o plano da experiência vivida nas religiões, o seu modo de sentir e
entender aquele que crê, a compreensão da linguagem da experiência
religiosa, o transcendente como princípio essencial que é captado
pelo homo religiosus.
Em síntese pode-se afirmar que a fenomenologia da religião estuda
as expressões religiosas em seus contextos com vistas a considerar o
seu sentido, sua estrutura e coerência e sua dinâmica. (ARAGÃO,
2010).
O surgimento de novas crenças no Brasil forneceram a fonte para os
estudos científicos, em especial a partir do final do século XIX.
As pesquisas acadêmico-científicas sobre a temática religiosa se
desenvolve mais ainda a partir de 1971, quando foram estruturados os
programas de pós-graduação em sociologia e antropologia. A
especialidade de Ciências da religião deram ainda novas
perspectivas para os pesquisadores das universidades na qual o campo
religioso foi estabelecido (CAPELLARI, 2001, p. 141).
São inúmeras as religiões estudadas no Brasil de 1900 a 2000: As
Religiões Evangélicas, o Espiritismo Kardecista, as Religiões
Afro-brasileiras, as Religiões da Ayahuasca (Santo Daime e União
Vegetal), as Religiões Orientais (Hare Krishna, o Budismo, o
Zen-Budismo, o Yoga, as Religiões japonesas) o Judaísmo, o
Islamismo, a Antroposofia, a Religião da Boa Vontade, Xintoísmo, o
Catolicismo, Religiões Chinesas, a Perfect Liberty, a Seicho-no-ie,
a Sokagakkai, práticas religiosas “esotéricas” (Vale do
Amanhecer, Fraternidade Eclética Espiritualista Universal),
movimento Nova Era, Taoismo, Sufismo.
Tais estudos dão a chance de proximidade entre a religião e a
ciência, visto que um estudo aprofundado sobre uma denominação
religiosa, mesmo que com intenções exclusivamente científicas
podem trazer a tona ideias ainda não pensadas sobre aquela
denominação, acrescentar ao campo religioso inovações
significativas ampliando ainda mais o debate e promovendo o melhor
conhecimento das mais diversas manifestações religiosas. Há uma
via de mão dupla em relação ao conhecimento religioso. De um lado
o conhecimento do fenômeno religioso a partir de pesquisas
científicas, de outro esse conhecimento observado de forma empírica
envolvendo também as subjetividades dos praticantes dessas
manifestações. Neste sentido essa relação entre ciência e
religião faz proporcionar o estudo das religiosidades a partir de
dentro, envolvendo o que ocorre nos ritos, a visão dos fundamentos
das crenças, as suas finalidades, intenções, éticas, as
representações dos crentes, os imaginários e os dogmas.
TABELA
1
RELIGIÃO
MÍSTICA / Contemplação
|
RELIGIÃO
ASCÉTICA / Ascese
|
Profeta:
exemplar
|
Profeta:
emissário
|
Religiões:
Budismo
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Religiões:
Zoroastrismo, judaísmo, cristianismo, islamismo
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Fiel:
receptor do divino (somente iniciados)
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Fiel:
instrumento de Deus (para todos)
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Tendência:
Imanência e despersonalização do divino / mística e ascese
fora do mundo.
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Tendência:
Personalização do divino / ascese dentro do mundo.
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Referências
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Gilbraz. Comentário:
Interfaces metodológicas das ciências humanas e das teologias.
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CAPELLARI,
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